1ª Travessia aérea do Atlantico Sul (1922)


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“Volto a debater com o Comandante Gago Coutinho a nossa situação que parece bastante grave. Devemos estar a 650 milhas do Penedo e não temos mais de oito horas e meia de combustível.
Para chegarmos precisaríamos voar a 80 milhas por hora e estamos caminhando a 72 milhas por hora.
O lógico, o prudente, seria voltar para trás, mas a má impressão que se produziria, se assim fizéssemos, seria enorme.
(...)



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  • Preliminares para a realização da travessia 


Em 1920, Sacadura Cabral encontrava-se na Inglaterra, adquirindo material para a Aviação Naval (AN) portuguesa e relacionando os tipos de aeronaves considerados ideais para a realização da travessia do Atlântico. De antemão, sua opção recaiu na compra de um hidroavião, devido à inexistência de aeródromos nas Ilhas de Cabo Verde e Fernando de Noronha. 

Fairey IIID Mk II na Doca do Bom Sucesso
A sua escolha apontou o fabricante inglês Fairey, construtor do avião Fairey III-D. Pesou sobremaneira na escolha por um hidro inglês, uma questão muito importante, que era a fiabilidade do motor. Embora Sacadura Cabral preferisse tratar com fabricantes franceses, o confiável motor Rolls Royce, já bem conhecido de sua viagem anterior de Lisboa a Funchal, predominou como o melhor. A empresa Fairey, inclusive, já dispunha do projeto de um hidroavião com características semelhantes a que Sacadura Cabral procurava, um Fairey III-D, modificado, adaptado a uma viagem transoceânica, com a envergadura das asas aumentada e depósitos suplementares de combustível nos flutuadores principais. Sacadura Cabral, com sua equipa, acompanhou a construção e modificação do avião, que, após difíceis experiências e reajustamentos, ficou pronto quase no final do ano de 1921.

O contrato de aquisição de aviões à fábrica Fairey incluía mais dois hidroaviões F III-D, de série. O avião F-400, que mais tarde seria denominado de “Lusitânia”, foi recebido encaixotado, em janeiro de 1922, tendo o pessoal do Centro de Aviação Naval (CAN) de Lisboa iniciado a sua montagem.

Gago Coutinho e Sacadura Cabral antes da partida
Sacadura Cabral e Gago Coutinho (o outro mentor do projeto que teria a seu cargo a navegação durante a travessia) acompanharam, todos os passos para a preparação da aeronave, insistindo para que tudo ficasse pronto antes do final do mês de março. Finalmente, na manhã do dia 30 de março de 1922, a dupla de aeronautas descola com o hidroavião “Lusitânia”, da doca do Bom Sucesso, em Lisboa, rumo a Las Palmas, nas Ilhas Canárias, primeira parte da viagem, que ficou conhecida como a Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul. Apesar do rigoroso planeamento da viagem e da eficácia do sextante de Gago Coutinho, os aeronautas encontraram extremas dificuldades tendo sido necessários três aviões para que atingissem a cidade do Rio de Janeiro, então capital brasileira, depois de cumprirem escalas de vôo em Las Palmas; Gando; São Vicente; São Tiago; Penedos de São Pedro e São Paulo; Fernando de Noronha; Recife; Salvador; Porto Seguro;  Vitória;  e Rio de Janeiro.

Tanto em Portugal, como no Brasil, a viagem gerou um clima de grande expectativa durante todo o período em que decorreu.


  • Do planeamento à travessia do Atantico Sul (Lisboa - Rio de Janeiro)


Dada a grande distância a percorrer, definiram-se, na rota, várias escalas para manutenção e reabastecimento da aeronave e descanso dos dois tripulantes: as Ilhas Canárias e o arquipélago de Cabo Verde seriam as primeiras escalas da viagem.

A grande dificuldade colocava-se em encontrar novos pontos de apoio entre a África e o Brasil, necessários devido à insuficiente autonomia da aeronave (mesmo com a modificações introduzidas) determinando-se, como local de paragem, a ilha brasileira de Fernando de Noronha.

Fairey IIID Mk II na Doca do Bom Sucesso no dia da partida
A Marinha Portuguesa concedeu o apoio naval à realização do raide aéreo, com três navios: o “5 de Outubro” e o “Bengo” foram destacados para aguardar os aviadores nos primeiros locais de paragem, enquanto o “República” prestava a assistência no mar, transportando peças, combustível e pessoal, acompanhando-os até ao Brasil.

O espaço disponível a bordo do hidroavião era bastante reduzido, razão pela qual o planeamento da viagem foi estudado ao nível do pormenor. No comando da aeronave seguia Sacadura Cabral, e, um pouco atrás, viajava Gago Coutinho, responsável pela orientação e navegação. Partilhando o espaço deste oficial, acomodavam-se materiais como: instrumentos de navegação, mapas, ferramentas, pistola de sinalização, lanterna, caixa de primeiros-socorros, água e comida e, ainda, uma mesa para efetuar cálculos.

De particular valor simbólico, transportavam a obra “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, que, pela primeira vez na História, atravessava o Oceano Atlântico, a bordo de um avião.

Na escala em Las Palmas nas ilhas Canárias, uma revisão ao motor e aos instrumentos identifica o primeiro problema técnico: confirma-se uma avaria na bússola, o excesso de consumo de gasolina e a inundação dos flutuadores do hidroavião pela água do mar. Tal não os impediu de prosseguir com a viagem, rumando até São Vicente e Porto Praia, em Cabo Verde, voando um total de 850 milhas. Para tal, bastou esvaziar os flutuadores e substituir a bússola pela observação das ondas e da sombra do avião na água, como complemento às observações obtidas pelo sextante de Gago Coutinho.

Sacadura Cabral entrando no Lusitânia antes da partida
Alteraram os planos da viagem, substituindo a a escala prevista na Ilha de Fernando de Noronha, por uma nos Penedos de São Pedro e São Paulo (conjunto de pequenas ilhas rochosas e pedregosas pertencente ao estado brasileiro de Pernambuco situados na parte central do oceano Atlântico equatorial, distando 338 milhas do arquipélago de Fernando de Noronha mas já na plataforma continental americana), na costa brasileira onde o cruzador "Republica" os aguardaria. Em particular nesta etapa seria posta à prova a exactidão das técnicas e instrumentos de navegação de Gago Coutinho.

A 18 de abril, após a arriscada etapa, percorridas cerca de 2.650 milhas, o “Lusitânia” sofre um acidente ao amarar, na forte ondulação existente junto aos Penedos que arrancou um flutuador do hidroavião, danificando irremediavelmente o monomotor, que se virou e, finalmente, acabou por afundar.

As aviadores foram prontamente socorridos pelo salva-vidas do Cruzador “República”, que os aguardava no local conforme planeado.

 Fairey IIID Mk II Transatlantic (Lusitânia)
partida de Belem a 30-3-1922
Ao ter conhecimento do acidente, o Governo português enviou outro hidroavião Fairey, para que pudessem completar a viagem.

Porém, no dia 11 de maio, uma nova tragédia aconteceu. Após reiniciarem a viagem, uma falha no motor do novo avião obriga a uma amaragem de emergência, e, com o "Republica" a aguarda-los em Fernando Noronha, ficam nove horas desaparecidos, sendo salvos pelo cargueiro inglês “Paris City”, que se desvia da sua rota para os recolher e transportar para o navio português.

O Governo português envia o ultimo "Fairey" IIID da Aviação Naval Portuguesa bordo do navio “Carvalho Araújo”.

Reunidos todos os esforços para continuar esta travessia, após escalas no Recife, Salvador da Bahia, Porto Seguro e Vitória chegam ao Rio de Janeiro, a 17 de junho de 1922.

Encerrava-se, assim, uma aventura de 4.527 milhas, percorridas em 62 horas e 26 minutos. Ao terceiro hidroavião Fairey, que completou a travessia, foi atribuído o nome de “Santa Cruz”, pela esposa do Presidente do Brasil, Dr. Epitácio Pessoa.

  • As etapas realizadas

A travessia do Oceano Atlântico apresentava-se como um enorme desafio para a época. Seria uma viagem aérea de 4.350 milhas náuticas cuja parte mais difícil seria atravessar da costa africana para a costa do Brasil, onde o Cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte seria o ponto mais próximo.

 Fairey IIID Mk II Transatlantic (Lusitânia)
partida de Belem a 30-3-1922
O ponto de partida, na costa africana, teria de ser escolhido na zona correspondente às ilhas de Cabo Verde, estendendo-se por Dakar até à Guiné Portuguesa. A distância a vencer nessa parte da travessia seria de cerca de 1.600 milhas, partindo de Dakar, cerca de 1.500 milhas, largando da Guiné Portuguesa, e de cerca de 1.450 milhas se fosse escolhido como ponto de partida o Porto da Praia, na ilha portuguesa de Cabo Verde.

Há época, poucas viagens dessa magnitude, sobre o mar, haviam sido realizadas e das quais se pudessem colher experiências e sugestões sobre as máquinas empregadas e, sobretudo, sobre os processos de navegação aérea utilizados. Até então, somente haviam sido realizadas:
  • a travessia do Mediterrâneo França-Argélia pelos franceses; 
  • a travessia do Atlântico Norte pelos americanos; e 
  • a travessia da Terra Nova à Islândia pelos ingleses. 
Na primeira, não se tinha utilizado a navegação astronómica, pois na distância a vencer, 400 milhas, seria bastante lançar-se mão da navegação estimada, com a vantagem de se fazer a correção necessária ao avistar as Baleares.

Na travessia dos americanos, os hidroaviões foram guiados por navios escalonados de 60 em 60 milhas, servindo-se da TSF, quando o nevoeiro impedisse de avistar os projetores. Do balizamento do caminho e do fato de os americanos só fazerem observações astronómicas depois de os hidroaviões amararem, conclui-se que eles não tinham confiança na navegação aérea por meio da observação dos astros.

Fairey IIID Mk II Transatlantic (Lusitânia)
partida de Belem a 30-3-1922
Na travessia levada a efeito pelos ingleses, apesar de durante a viagem terem feito algumas observações de estrelas – embora poucas – não se depositou confiança nos resultados obtidos. Ademais, a travessia não era difícil: a carta da Irlanda tem 250 milhas náuticas de extensão no sentido norte-sul e a costa inglesa constituía como que um muro contra o qual se viria a esbarrar e assim, por muito grosseira que fosse a navegação, fornecendo referência importante.

Os aviadores portugueses dispunham pois de poucos ou nenhuns ensinamentos que pudessem utilizar nos seus estudos para levar a efeito a Travessia Aérea do Atlântico Sul.

  • Etapa Lisboa – Las Palmas (Ilhas Canárias) 
Às 7h (GMT) de 30 de março de 1922, depois de uma corrida de 15 segundos sobre as águas do Rio Tejo, em frente à histórica Torre de Belém, o hidroavião Fairey IIID batizado de “Lusitânia” descola com destino a Las Palmas. Os aeronautas perdem de vista a terra exactamente às 7h 22m. Ao meio-dia, o ponto observado Latitude 31º 27’N / Longitude 13º 44’W indica que andaram 484 milhas em seis horas, o que dá uma velocidade média de 81 milhas por hora. Às 13h 25m os aeronautas bateram o seu recorde Lisboa-Funchal, pois já haviam voado 530 milhas. Às 14h 15m, avistaram, a estibordo, a uma distância de 50 milhas, a Ilha Selvagem Grande. Havia 6h 53m que navegavam sem visualizar terra. Às 14h 57m, avistaram, a estibordo, a ponta norte de Tenerife e, às 15h 37m, amararam em Porto de La Luz.

  • Etapa Gando (Ilhas Canárias) – São Vicente (Arquipélago de Cabo Verde) 

Dadas as condições do Porto de La Luz para a descolagem de um hidroavião carregado, foi escolhida a Baía de Gando para largada para a segunda etapa.

Uma vez amarado o “Fairey” na Baía de Gando, recearam que os flutuadores, não dispondo de vedação adequada, se encontrassem cheios de água, situação esta que lhes causava graves preocupações, pois em Porto Praia, onde deveria iniciar-se a parte mais longa da Travessia, não havia possibilidade de pôr o hidroavião em terra de modo a esvaziar completamente os flutuadores antes da partida, o que iria, possivelmente, prejudicar a realização da grande etapa Porto Praia – Fernando de Noronha.

Por outro lado, Sacadura Cabral vinha notando durante a viagem um consumo excessivo de gasolina, muito superior ao previsto nas experiências feitas na Inglaterra e em Lisboa. Ancorado o avião e efectuada uma verificação minuciosa no mesmo, verificou-se que, de fato, havia água nos flutuadores, o que se traduzia no aumento de carga e ainda por cima em local situado muito à ré do centro de gravidade do avião, o que viria a dificultar ou a impedir a descolagem com o combustível necessário para a etapa mais importante da Travessia. Dadas as condições do Porto de São Vicente (Cabo verde), os aviadores alteraram um pouco o seu itinerário e resolveram ir ali amarar e, para aí ser realizada, em boas condições, uma revisão completa do aparelho.

Cruzador República aguardava os aviadores junto aos Penedos
No dia 5 de abril, efetuaram a etapa Gando - São Vicente (850 milhas), em 10 horas e 43 minutos de voo, ou seja, à velocidade média de 79,5 milhas por hora.

Verificando mais uma vez a situação, Gago Coutinho e Sacadura Cabral, chegaram à conclusão, que, de fato, o consumo de gasolina era de 20 galões por hora e, nestas condições, os 330 galões que os tanques podiam levar, poderiam dar apenas para voar dezasseis horas, na maior etapa do precurso, Porto Praia – Fernando de Noronha, e ainda seria necessário voar à velocidade média de 80 milhas por hora.

Poder-se-ia vir a encontrar, durante a etapa, vento favorável, mas, para descolar com toda a carga era necessário que existissem em Porto Praia as condições para pelo menos, esgotar a água que viesse a entrar nos flutuadores. Perante esta situação, podiam desistir de continuar a viagem ou tentar fazer escala nas proximidades dos Penedos de São Pedro e São Paulo, praticamente em alto mar, aí reabastecer de gasolina e seguir para Fernando de Noronha. 

Evidentemente que desistir era resolução difícil de ser tomada, em face da expectativa tanto em Portugal como no Brasil, pelo êxito da Travessia. Amarar junto aos Penedos de São Pedro e São Paulo era uma solução muito arriscada, todavia, como estava situado na zona das calmarias, poder-se-ia lá chegar numa ocasião propícia que permitisse amarar e descolar sem grande dificuldade. Tomada a desisão de continuar, o Cruzador “República”, foi enviado rumo ao local planeado, com tudo o necessário para reabastecer o “Lusitânia” junto aos Penedos de São Pedro e São Paulo, a 908 milhas de Porto Praia.

Preparado o hidroavião, resolveram os aviadores partir a 17 de abril para Porto Praia, tendo sido voadas as 170 milhas que a separam da ilha de São Vicente, em 2 horas e 15 minutos.

  • Etapa Porto Praia (Ilha de São Tiago – Cabo Verde) - Penedos de São Pedro e São Paulo (Brasil) 

A 18 de abril estava tudo a postos para que viesse a ser efetuada a primeira ligação aérea Portugal - Brasil, ( os Penedos de São Pedro e São Paulo estão localizado dentro de águas territoriais brasileiras).

Às 5h 55m o “Lusitânia” descola levando em seus depósitos 255 galões de gasolina.

Lusitânia após amaragem nos junto aos
Penedos de S.Pedro e S.Paulo
Às 6h 10m os aeronautas deixam de ver a terra.

Às 8h, a duas horas da partida, Sacadura Cabral constatou que os 195 galões de gasolina que lhe restam nos tanques apenas lhes proporcionam mais 10 horas de voo. Raciocinando com tranquilidade, concluiu que a alta temperatura durante a noite provocara alguma evaporação de gasolina e, acrescentando a isso o tempo para conseguir fazer descolar o aparelho, restavam 235 galões de combustível, ou seja, dispunham de 12 horas de autonomia.

Para conseguir, nesse lapso de tempo, percorrer as 918 milhas da etapa prevista, era necessário que se voasse à velocidade média de 76 milhas por hora, o que estava longe das possibilidades do "Lusitânia". Ainda por cima, o vento, favorável tinha fraca intensidade. Restava continuar e esperar encontrar vento mais favorável.

Às 9h 10m o vento continua sem ajudar e o consumo de gasolina mantém-se nos 20 galões por hora. Nesse ponto culminante da Travessia, damos a palavra a Sacadura Cabral, transcrevendo algumas citações de seu relatório de viagem:
«Volto a debater com o Comandante Gago Coutinho a nossa situação que parece bastante grave. Devemos estar a 650 milhas do Penedo e não temos mais de oito horas e meia de combustível. Para chegarmos precisaríamos voar a 80 milhas por hora e estamos caminhando a 72 milhas por hora.
O lógico, o prudente, seria voltar para trás, mas a má impressão que se produziria, se assim fizéssemos, seria enorme. (...)
Confesso que, para mim, este voo foi a etapa mais amargo da travessia (..), porque durante 9 horas e meia vivi sempre na incerteza de ter ou não combustível suficiente para chegar ao final da etapa. Se assim acontecesse e tivéssemos de pousar no mar, longe dos Penedos, aqueles que não nos conhecessem suporiam sempre que tínhamos partido com gasolina suficiente, mas que, tendo nos perdido, tínhamos terminado por pousar, ao acaso, em qualquer ponto do oceano, e assim ficaria por demonstrar aquilo que pretendíamos provar, isto é, que a navegação aérea é suscetível da mesma precisão que a navegação marítima. (...)
Desde que partíramos de Lisboa tínhamos colocado a vida em risco e, nestas condições, o melhor era ir até onde a gasolina permitisse.(..)»
Fairey IIID Pátria em voo sobre os Penedos de S.Pedro e
S.Paulo rumando a F. Noronha onde não chegaria
Às 17 horas avistaram os Penedos de São Pedro e São Paulo e, a seguir, o navio “República” que os aguardava. Por essa altura, quanto tomaram rumo directo ao vaso de guerra português para amararem próximo dele, não dispunham de mais de dois ou três litros de gasolina no tanque.

Mas, lamentavelmente, as previsões pessimistas tornaram-se realidade: os Penedos não proporcionavam o abrigo necessário e desejável e o mar junto deles, naquela tarde, estava bastante revolto. Com a amaragem estava quase concluída, uma ondulação maior colide frontalmente com um flutuador partindo-o e provocando consequentemente, o afundamento do “Lusitânia”.

Apesar da lamentável perda do "Lusitânia", ter chegado onde chegou, tinha sido a maior proeza da História da Aviação até à data.

Partindo de uma ilha, por via aérea, voando 11 horas sem ver a terra, encontrar, em pleno oceano, depois de percorridas 908 milhas sobre o mar, um pequeno penedo com 200 metros de extensão e uns 15 metros de altura, provava de sobremaneira a validade das técnicas e instrumentos de navegação aérea desenvolvidos para o empreendimento por Gago Coutinho, nomeadamente o seu "sextante de horizonte artificial" (o de bolha) e o "Corretor de Rumos" (“Corretor de Abatimento” no Brasil) usado para compensar o desvio causado pelo vento.

O entusiasmo que esta grande proeza científica despertou em Portugal, obrigou que imediatamente fosse enviado aos aviadores outro hidroavião para concluir o ambicioso projeto. Em poucos dias, embarcou a bordo do navio brasileiro, o “Bagé”, outro avião “Fairey” de tipo igual ao “Lusitânia”. Havia o projeto de desembarcar o aparelho em pleno mar, junto ao Penedo de São Pedro e, assim, a Travessia não sofreria interrupção no seu itinerário previamente estabelecido; todavia, uma vez o navio chegando próximo do Penedo, verificou-se a impossibilidade de um desembarque em boas condições. Ficou, pois, assente que o “Fairey” seria desembarcado em Fernando de Noronha e os aviadores viriam a fazer o percurso Fernando de Noronha – Penedo de São Pedro – Fernando de Noronha e largar dali para a costa brasileira, completando, assim, a e­tapa que deixara de ser preenchido. pequeno penedo com 200 metros de extensão e uns 15 metros de altura, somente com o único auxílio do sextante criado especialmente para a arrojada empreitada.

Afundamento do Pátria, visto do Paris-City,
sob o olhar impotente do cruzador República
O entusiasmo que esta grande proeza científica despertou em Portugal obrigou que imediatamente fosse enviado aos aviadores outro hidroavião para levar a cabo o ambicioso projeto. Assim se fez e, em poucos dias, embarcou a bordo de um navio brasileiro, o “Bagé”, outro avião “Fairey III-D”de tipo igual ao “Lusitânia”(2).O plano inicial era desembarcar o aparelho em pleno mar, junto aos Penedos de São Pedro e São Paulo e, assim, a Travessia não sofreria interrupção no seu itinerário previamente estabelecido; todavia, uma vez o navio chegando próximo dos Penedos, verificou-se a impossibilidade de um desembarque em boas condições
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Consequentemente decidiu-se que o “Fairey” seria desembarcado na ilha de Fernando de Noronha e os aviadores voariam de Fernando de Noronha para os Penedos e daí de volta a Fernando de Noronha, de onde seguiriam para a costa brasileira, ficando assim completa a etapa interrompida com o acidente do "Lusitânia".

  • Etapa Fernando de Noronha - Penedos de São Pedro e São Paulo - Fernando de Noronha 
Como medida de segurança, foi instalado, a bordo do novo “Fairey”, mais um tanque de combustível, uma vez que este avião sendo o modelo padrão de fábrica tinha uma autonomia bem menor que o acidentado "Lusitânia". Assim, haveria mais garantia de para efetuar a etapa prevista de 670 milhas, dispondo-se de 161 galões de gasolina. Depois de três tentativas para descolar (devido ao peso extra de combustivel) é iniciado o voo às 9h da manhã do dia 11 de maio.

Pelas 13h, o tempo ameaça com fortes chuvas mas, às 13h 30m, os Penedos de São Pedro e São Paulo são avistados a menos de 15 milhas de distância. Todavia, os aguaceiros continuam a intensificar-se e os aviadores são forçados a tomar a decisão de regressar a Fernando de Noronha.

Cargueiro inglês Paris-City que primeiro socorreu o "Pátria"
Após sobrevoarem os Penedos e algum tempo depois iniciarem o regresso a Fernando Noronha, o motor começa a apresentar problemas e obriga a uma amaragem de emergência, que é bem sucedida, mercê também do calmo estado do mar. Várias tentativas foram feitas em pleno mar, que, por felicidade, estava calmo para pôr o motor em marcha, mas em vão.

Verificando a situação e chegaram à conclusão que deviam estar a 170 milhas de Fernando de Noronha e que, o vento, estava a desviar o "Fairey" para Oeste, entre meia e uma milha por hora. Os navios que faziam a carreira do Brasil para a Europa acostavam geralmente na ilha de Fernando de Noronha, passando a cerca de 60 milhas a oeste dos Penedos e, assim, na latitude em que se encontravam, deveriam passar a 30 milhas da sua posição. Existiam, na realidade, poucas possibilidades de virem a ser encontrados. Se o vento ajudasse e o hidroavião resistisse, talvez no dia imediato ou no seguinte isso viesse a acontecer.

A prudência determinava que se amarasse para poder verificar o que se estava passando. Assim fizeram, às 17h 35m, depois de já terem sido navegadas 480 milhas em 6 horas e 34 minutos de voo.

Preparação do Fairey nº 17 no Carvalho Araújo,
ao largo da ilha Fernando Noronha
O cruzador “República” devia estar, a 70 milhas de Fernando de Noronha, o que equivaleria a umas 100 milhas de distância do “Fairey”. Verificando a demora na chegada dos aeronautas a Fernando de Noronha e se tendo posto em marcha para proceder à sua busca, somente à uma hora da madrugada é que o “República” poderia passar pela latitude em que se encontravam.

Tudo dependia, porém, do desvio provocado pelo vento, que o hidroavião iria sofrendo, e só poderiam contar com o auxílio do barco português que, por certo, teria avisado à navegação do que estava ocorrendo.

Às 21h 30m conseguem pôr o motor em marcha, e tomam o rumo ao sul, em marcha lenta, a uma altitude quase rasante com o hidroavião a bater constantemente com a cauda na água, enfraquecendo assim a sua estrutura, que poderia colapsar a qualquer momento. Mas às 22h 25min, o motor parou novamente e não funcionou mais.

Fairey IIID "Santa Cruz"  a ser colocado na água
Agora só podiam esperar que o socorro aparecesse e, assim, Sacadura Cabral ajeitou-se sobre o motor e Gago Coutinho ocupou o lugar do piloto, a fim de conseguir equilibrar o “Fairey” e evitar que este viesse a se partir, em virtude das pancadas sucessivas que a cauda recebia da ondulação do mar.

Às 23h 45m, avistaram ao longe uma luz. Fazem dois tiros com a pistola sinalizadora que levavam a bordo e são correspondidos. Decorridos 50 minutos são recolhidos pelo cargueiro inglês “Paris City” que tendo intercetado às 22h um “aviso geral aos navegantes” para prestar socorro a um hidroavião amarado, possivelmente com avarias, na rota Penedos de São Pedro e São Paulo - Fernando de Noronha, tinha iniciado sua busca.

Salvos os aviadores, o “Fairey” é amarrado à popa do cargueiro para ser rebocado.

Às 6h 30m aparece o “República”. que tenta içar para bordo o hidroavião, a esta altura já muito maltratado, mas fracassa conseguindo apenas salvar o motor.

Perante mais este contratempo o Governo português resolve imediatamente mandar seguir para Fernando de Noronha o último “Fairey” (Nº 17) que a Aviação Naval possuía e, assim, o hidroavião posteriormente batizado de “Santa Cruz” chega à ilha brasileira no dia 2 de junho a bordo do cruzador português “Carvalho Araújo”.

  • Etapa ilha Fernando de Noronha - Recife (Pernambuco) 
Fairey IIID "Santa Cruz" na Chegada ao Brasil a 17-06-1922
Preparado o novo aparelho, os aviadores descolaram de Fernando de Noronha para Recife (capital do estado de Pernambuco), em 5 de junho.

Ás 11h 40m avistam o litoral nordeste do Brasil, e às 13h 30m, o “Santa Cruz” amarava em águas brasileiras do Recife, após ter percorrido 300 milhas num voo de 4h 30m, a uma velocidade média de 67 mph. Estava completada, assim, a Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul utilizando métodos e instrumentos criados, pelos portugueses, para a navegação aérea.

  • Etapa Recife (Pernambuco) – Salvador e Porto Seguro (Bahia) - Vitória (Espírito Santo) - Rio de Janeiro 
A viagem do Recife até à cidade do Rio de Janeiro, com escalas em Salvador e Porto Seguro (estado da Bahia), e Vitória (estado do Espírito Santo), decorreu sem maiores dificuldades.

Fairey IIID com Gago Coutinho na baia
de Guanabara a 17-06-1922
Finalmente, a chegada à cidade do Rio de Janeiro (Capital da República) ocorreu em 17 de junho, às 17h 32m. Foi um dia de euforia, em que os brasileiros e muitos portugueses radicados no Brasil deram largas ao entusiasmo e ao orgulho patriótico pelo facto de serem os aviadores portugueses os primeiros a descobrir, pelo ar, terras de Vera Cruz, como séculos antes outro notável navegante português, Pedro Álvares Cabral, tinha descoberto as mesmas terras depois de uma longa viagem pelo mar.

Embora a viagem tenha consumido setenta e nove dias, o tempo de voo foi de apenas sessenta e duas horas e vinte e seis minutos, tendo percorrido um total de 8.383 quilômetros.

A viagem tera servido de inspiração para os raides posteriores do brasileiro João Ribeiro de Barros e eventualmente de Charles Lindbergh.

  • A conquista

A Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul foi efetuada sem o auxílio de qualquer navio auxiliar, nem tampouco a bordo dos hidroaviões “Fairey” existia qualquer aparelho de radiotelegrafia; 

Receção dos aviadores no Rio de Janeiro
Na navegação da Travessia, feita fora da linha normal de navegação marítima, apenas se observou o Sol e a bordo do avião praticou-se a navegação como se estivesse a bordo de um navio isolado, dependente apenas da utilização da bússola, dos cronômetros e do sextante português. Os cálculos da posição foram feitos por processos especiais e muito rápidos, criados pelos aeronautas portugueses, e, assim, a posição não levava mais de três minutos para ser encontrada;

Estes processos permitiram o traçado de 40 retas de altura durante as 11 horas e 20 minutos de vôo que durou a etapa crítica Porto Praia – Penedo de São Pedro, numa extensão de 1.700 km;- Durante a Travessia Aérea do Atlântico Sul, os notáveis aviadores estiveram sem avistar terra durante 36 horas e 44 minutos e, durante este tempo, foram observados 96 grupos de alturas do Sol, ou seja, um grupo para cada 23 minutos; 

Durante a Travessia foram percorridas 4.527 milhas náuticas em 62 horas e 26 minutos de vôo, ou seja, a uma velocidade média, por hora, de 72,5 milhas náuticas por hora; 

Muito embora os métodos e instrumentos criados pelos aeronautas portugueses para a navegação aérea já tivessem provado sua precisão científica, quer na viagem Lisboa – Funchal, realizada em 1921, quer, principalmente, na Travessia Aérea do Atlântico Sul, foram mais uma vez postos à prova durante a Primeira Travessia Aérea (noturna) do Atlântico Sul, realizada em 1927.

O "Lusitânia"afundou-se em 18 de abril junto aos Penedos de São Pedro e São Paulo, mas na realidade, ao amarar junto aos Penedos o Fairey III-D Mk.2 «Transatlantic» tinha já realizado a ligação com o continente sul americano, já que os rochedos se encontravam na respectiva plataforma continental sendo também já território brasileiro.

Mapa da viagem
A Travessia prosseguiu com o Fairey III-D “Portugal” (ou "Pátria"), que também se perdeu na mesma área, em 11 de maio, sendo substituído pelo “Santa Cruz”, que, finalmente, chegou a Recife em 5 de junho e, posteriormente, ao Rio de Janeiro, em 17 de junho.

Acima de tudo esta viagem teve o grande mérito de comprovar a eficácia dos processos desenvolvidos por Gago Coutinho para a navegação aérea, assim como o bom desempenho do “Sextante de Bolha”, por ele inventado, e do "Corretor de Rumos" (ou “Corretor de Abatimento”) usado calcular e compensar o desvio causado pelo vento.

Numa época em que voar era uma odisseia, os portugueses demonstraram ao mundo, mais uma vez, ao longo da sua História de mais de oito séculos, a sua imensa vontade e determinação, o seu espírito pioneiro e aventureiro, a sua confiança no futuro, a sua legítima ambição.

Texto adaptado de uma palestra proferida por: Manuel Cambeses Júnior, Coronel-Aviador e Vice-Diretor do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica (Brasil)


NÚMEROS DA VIAGEM
Locais
Aeronave
Data 
Partida
(1)
Chegada
(1)
Duração
(Horas)
Distância (Km)
Vel. Média (Km/h)
Lisboa-Las Palmas
Fairey IIID Mk II   "Lusitânia"
30 de Março
7:00
15:37
8:37
1302
115
Las Palmas- Gando
 Fairey IIID Mk II   "Lusitânia"
2 de Abril
11:13
11:34
0:21
28
112
Gando - S. Vicente
Fairey IIID Mk II   "Lusitânia" 
5 de Abril
8:35
19:18
10:43
1572
146
S. Vicente-S. Tiago
 Fairey IIID Mk II   "Lusitânia"
17 de Abril
17:35
19:50
2:15
315
143
S.Tiago-Penedos
Fairey IIID Mk II   "Lusitânia" 
18 de Abril
7:55
19:16
11:21
1682
148
Fernando de Noronha-Mar
Fairey IIID Nº16
"Pátria"  (2) 
11 de Maio
11:01
17:35
6:34
889
133
Fernando de Noronha-Recife
Fairey IIID Nº 17 "Santa Cruz" 
5 de junho
10:48
15:20
4:32
556
124
Recife-Baía
Fairey IIID Nº 17 "Santa Cruz" 
8 de Junho
11:05
16:35
5:30
704
128
Baía- Porto Seguro
Fairey IIID Nº 17 "Santa Cruz" 
13 de Junho
10:30
14:33
4:03
393
96
Porto Seguro-Vitória
Fairey IIID Nº 17 "Santa Cruz" 
15 de junho
10:55
14:35
3:40
482
131
Vitória-Rio
Fairey IIID Nº 17 "Santa Cruz" 
17 de Junho
12:42
17:32
4:50
463
96
(1)Hora média de Greenwich 
(2) Este era o Fairey IIID Nº16 da AN, modelo standard, com asas de maior envergadura ou no qual foram instaladas as asas de maior envergadura do "Lusitânia", terá sido batizado de "Pátria" ou "Portugal" (as fontes variam). O "Lusitânia" era um Fairey IIID Mk II, aeronave única especialmente modificada pela Fairey para a viagem, dispondo de asas de maior envergadura e tanques de combustível suplementares que aumentavam grandemente a sua autonomia, relativamente ao avião de produção standard. No total foram percorridos 8386 Km, em 62h26m, a uma velocidade média de 134 Km/h


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FONTES
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NOTAS FINAIS
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O monumento evocativo do feito histórico que pode ser visto em Lisboa, junto à Torre de Belém, é uma representação toda em metal em tamanho real do “Santa Cruz”, o hidroavião que concluiu a viagem iniciada em 30 de março de 1922 com o “Lusitânia (O "Lusitânia" que efectivamente realizoi a maior parte da viagem, era diferente, tinha maior envergadura e uma capacidade de combustivel muito maior").


O Museu de Marinha, em Lisboa, acolhe no seu acervo o hidroavião Fairey IIID "Santa Cruz", o único aeroplano sobrevivente à travessia, e que foi batizado de “Santa Cruz” pela esposa do então Presidente do Brasil, Dr. Epitácio Pessoa (trata-se também do único exemplar existente no mundo deste tipo de avião “Fairey IIID”).